quarta-feira, 15 de setembro de 2010

daqueles que arrepiam...

Um senhor perambula pela rua. Atrai os olhares de um jovem estudante de medicina, que passa a ter curiosidade na criatura. Procura saber mais e se aproximar do maltrapilho. Ora, o que um morador de rua teria de interessante pra contar? ...Depois de algum tropeço e barreiras quebradas, descobre que o mendigo conhece a fundo a mente humana. Criam um laço de amizade gigantesco. Falcão, o mendigo, ensina ao jovem acadêmico o que ele provavelmente não aprenderia em nenhuma faculdade de medicina. No meio de sua insanidade, existe uma pureza indecifrável. Certas revelações fazem o estudante enxergar moradores de rua de outra maneira. Por trás de uma loucura há uma história. Todos eles têm. E algumas, completamente inusitadas.

Se até aqui não sabem do que se trata esse parágrafo, explico: essa é a história do Futuro da Humanidade. Um dos livros mais especiais que já li (e para o qual se encaixa exatamente aquela frase que diz que os livros não mudam o mundo, mas mudam as pessoas, e essas sim mudam o mundo).

Hoje, quando abri o jornal, já pulei pra crônica do dia. Marcelo Canellas. Fazia tempo que não lia um texto daqueles que, quando chega na última frase, vem o arrepio e um suspiro. Por isso, quis dividir ele por aqui. E vocês vão entender o porquê do parágrafo acima, quando lerem aí embaixo.

Good Night

– Good night! – cumprimentava com voz gutural, anunciando solenemente sua chegada aos fregueses dos bares apinhados. Insólita figura calçando havaianas e vestindo um fraque puído cuja aba de trás descia por sobre uma bermuda esfarrapada, era o nosso mendigo de estimação.
– Good night! – repetia. E de tanto repetir já ninguém mais o chamava de Raimundo, seu nome de batismo segundo ele próprio garantia, mas tão somente de Good Night. Circulava pela noite de Brasília e parava sempre na nossa mesa.
– Ô Good Night, quem foi que te deu esse fraque?
– O embaixador da Prússia.
Quando alguém dizia que a Prússia não existe mais e que nunca teve embaixada em Brasília, Good Night apenas resmungava, com ar de enfado:
– Quanta ignorância!
E passava a dar uma aula sobre a força dos bálticos, o poder dos cavaleiros teutônicos e as façanhas do general Otto Von Bismark.
– Quem foi que te ensinou isso Good Night?
– A vida – explicava, gabando-se de correr o mundo na marinha mercante, de contrabandear ópio na China ou de lutar nas fileiras da Legião Estrangeira. Simpatizou comigo e resolveu espalhar por aí que eu era seu irmão.
– Que história é essa Good Night, você também é lá de Santa Maria?
– Ce ne sont pas seulement les liens du sang qui forment la parenté, mais ceux du coeur et de l’intelligence – respondeu num francês tão impecável que tive de pedir ajuda para traduzir (“não são somente os traços de sangue que formam o parentesco, mas também os do coração e os da inteligência”).
– Com quem você aprendeu francês, Good Night?
– Com Montesquieu.
Tentei levantar a história de vida dele, mas sem documento de nenhuma espécie, sem parentes ou qualquer referência de sua origem, pude apurar apenas que ele chegou a estudar História em Salvador e foi acometido de esquizofrenia por volta dos 20 anos. Devia ter uns 60 quando o conheci. Eu e alguns amigos conseguimos uma vaga para ele num albergue público e um bico de jardineiro no Lago Sul. Mas ele logo abandonou cama e serviço, voltando a zanzar pela noite com seu indefectível cumprimento:
– Good night!
Dia desses, depois de uma longa viagem de trabalho, soube de sua morte. Permaneci uns três dias enlutado, doído, como quem perde um naco do coração, como quem cai no vácuo da inteligência. Eu só queria ter me despedido, eu só queria ter dito:
– Good night, brother. God bless you.
[Marcelo Canellas]
(publicada no Diário de Santa Maria, em 15.09.)

Um comentário:

  1. Realmente linda a crônica dele!
    Nunca devemos julgar as pessoas por sua situação ou aparência sem conhecermos realmente o porquê delas estarem naquela situação, a história por trás.
    Pessoas que se tocam com isso tem um grande coração Licinha =)
    Sou tua fã! Já disse isso né? Mas é verdade ;)

    beijos

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