sexta-feira, 29 de outubro de 2010

epitáfio V

'...
Nunca dei presentes a ela, nunca recebi nada. Não conheci a letra dela, nunca a vi escrevendo. Não sei se sua caligrafia era redonda ou inclinada, legível ou feia, ou se ela colocava bolinhas em lugar dos pingos nas letras. Eu nunca disse que a amava nem a ouvi dizer isso pra mim. Nunca falamos de amor, de filhos, de amantes, de passado. Do futuro.
Ela não me falou sobre sua flor favorita. Sua primeira vez. Ela não perguntou sobre a minha. Não sei se ela acreditava em Deus. Em reencarnação ou em horóscopo. Não sei se ela cozinhava bem ou o prato de que gostava mais. O que achava da moda, ela jamais me falou. Curtia samba? E caipirinha? Qual seu número de sorte? O nome de seus pais, o que ela achava de homens de barba, das loiras, de armas e tatuagens - são coisas que nunca vou saber. Será que, como eu, ela achava que a felicidade é um negócio que inventaram para enganar os pobres, os feios e os esperançosos?
Não sei se tomou drogas um dia ou se era bamba em matemática no tempo da escola. Se gostava de resolver as palavras cruzadas do jornal. Será que ela sabia jogar truco? Teve todas as doenças da infância? (...) Foi assaltada alguma vez? Transou quando na verdade estava a fim de dormir e esquecer? Nunca soube se ela viajou de trem ou de navio. Se teve vontade de matar alguém que um dia amou. Se cortou os cabelos só para agradar a algum homem. Se cortou o pé em caco de vidro quando mais nova. Se em algum momento humilhou alguém e se arrependeu depois. Se pensou em fugir. Se lembrava dos sonhos depois que acordava. Se sonhava. Se sorriu para pessoas pensando em mandá-las à merda. Se sentiu saudade. (...)Terá ela fingido alguma vez que a coisa estava muito boa quando estava apenas morna? Compreendeu o significado da palavra "sacrifício" a tempo?
Será que ela se orgulhou de algo de que deveria se envergonhar? Será que se lembrava da primeira vez que viu o mar? Do primeiro beijo? Será que ela se sentiu digna em alguma oportunidade? E suja? Eu nunca soube o que ela achava da Ioga. Das surubas. E das coisas que assustam quando pensamos nelas. De gente que tem medo de escuro. E de quem sabe que temos escuros dentro da gente. Eu não soube nada disso.(...) E era bom.
No entanto, eu sabia sua altura. Porque ela precisava ficar na ponta dos pés toda vez que nos beijávamos.

EpitáfioV, Marçal Aquino

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